
As primeiras notícias falavam em três mortos no primeiro dia. Sem confirmação. Depois, que uma mulher grávida teria morrido. Mais tarde veio a notícia de que uma menina teria levado uma bala de borracha no pescoço e chegado ao hospital sem vida. Até agora nenhuma das duas foi confirmada. Os números oficiais falam em um ferido – que foi operado e está hospitalizado – e 30 presos. Mas é verdade que uma repórter da Radio Brasil Atual quase foi atingida por um tiro de revólver. A TV mostrou com destaque, aliás, um soldado usando revólver. Mesmo que as autoridades insistam em dizer que só usou armas “não letais”.
Dói ver pela TV o soldado empurrando a mãe que carrega o filho enrolado no cobertor, fazendo-a andar mais depressa. Dói escutar uma outra que só conseguiu pegar a criança e se queixou de maus tratos porque voltou para pegar a mamadeira. E ainda uma terceira, que queria entrar em casa para retirar os quatro filhos que ainda dormiam quando a polícia chegou ao amanhecer e disse que estava impedida.
Dói ver vários meninos pequenos, de mãos dadas, correndo descalços pela rua fugindo das bombas, do barulho, da fumaça, do cheiro horrível que impede respirar e faz chorar - perseguidos apenas por terem nascido lá. Um deles levava o cachorrinho na coleira, o afeto que não podia ficar para trás. Talvez estejam alojados agora no campo improvisado pela prefeitura, na fila da comida que suas mães já não fazem em casa – na sua casa. Dormirão no chão da igreja ou em colchões vindos sabe-se lá de onde e não mais na sua caminha ao lado do irmão. Foram todos levados, com as mães e avós, para um “abrigo”.
Alguém chamou esse lugar de campo de concentração. Com razão: é um lugar onde os “inimigos” ficam concentrados. Pelos relatos dos repórteres, quem entrava no campo não podia sair. Mas onde tem guerra, também tem resistência. As grades foram derrubadas. E aí vem mais bomba, mais fumaça, tiros de bala de borracha, gritos, tropeços e correria. Foi assim. A TV mostrou, os sites, os blogues estão no ar. Basta clicar para que nos tragam a imagem do constrangimento. Ficamos constrangidos porque somos humanos, porque só existimos em função da alteridade, de levar o outro em conta como um igual – mesmo que em situações diferentes.
O tratamento desumano dado aos milhares de moradores do Pinheirinho serve a quê? A quem? Até os postes de São José dizem a quem passa que há um megaprojeto de construção moderna para a área – que se valorizou com a expansão imobiliária. Junto com a polícia que acordava e arrancava os moradores de suas casas, os tratores derrubavam as de madeira e lacravam as de alvenaria. Os pertences são um outro problema grave: há fila, senha, portões. Eles ficaram sem nada. Já perderam, além da casa, o emprego, a vida em família, o amigo vizinho, a sociedade que construíram naquele lugar. Como reclamaram na fila, mais gritos, mais bomba, mais fumaça, mais desespero.
Terra arrasada – essa é a pior das guerras. O terreno – de repente avaliado em 200 milhões com uma dívida de 15 para a prefeitura - será entregue limpinho. Para quem? Nesses casos alguém paga a diferença? Se a prefeitura é a única credora, por que esse terreno ainda não é público?
De um dia para o outro os moradores do Pinheirinho transformaram-se em invasores. O bairro – pobre, como começaram todos os bairros – virou acampamento. Mas é bairro. Na TV, todos reparam que as ruas são asfaltadas, que há postes de luz. Muitas casas têm acabamento, algumas são pintadas há pouco tempo.Os moradores dizem que pagam água e eletricidade – ou seja, têm endereço. As ruas foram abertas por eles e são largas, a área é urbanizada, há duas linhas de ônibus - o que dava certeza de que, um dia, seriam donos das casas que puderam construir em mutirão.
Há ainda a questão constitucional. Se os moradores estão lá há oito anos, como diz a prefeitura, têm o direito de usucapião garantido pela Constituição, que prevê cinco anos para o pedido com prova de benfeitoria. Eles construíram tudo por lá. Outra coisa que está na nossa Carta-Cidadã de 1988 é o direito ao teto, garantido pelo artigo 6º– e também integra a Declaração dos Direitos do Homem, assim como o direito à vida. Num outro artigo, a Constituição fala em direito à propriedade, é verdade, que todos também têm. Mas há a ressalva do respeito à sua função social.
No sábado, os moradores foram dormir mais sossegados, com a promessa de um possível acordo entre o governo federal – que compraria a área pelos 15 milhões com a proposta de que o governo estadual e a prefeitura investissem em infraestrutura. Havia também uma liminar da justiça federal que suspendia a invasão policial. Mas aí veio o ataque-surpresa. Foram acordados pelo barulho das bombas, dos tiros e da gritaria. O “acordo” foi ignorado. A justiça, numa contra-ordem, mandou invadir. A tropa de choque já estava preparada. Era madrugada. Tudo virou fumaça.
E assim o Pinheirinho, antiga parte do Campo dos Alemães, mais parece um enclave policial no território nacional.
Rose Nogueira é jornalista, secretária de Cultura e Comunicação do Sindicatos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo e Presidente do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo.